Casal homoafetivo dá relato sobre adoção de três irmãos: 'Hoje eles acreditam no amor e antes eles não acreditavam'
Tatiana Fernandes / Redação RedeTV!Carlos e Lucas são pais de Kawã, Edgar e Ketlin e retratam a rotina da família nas redes sociais com leveza e muito humor
(Foto: Reprodução/Instagram)
Quando o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu, em 2015, que casais homoafetivos possuíam os mesmos direitos que casais heterossexuais no processo de adoção de crianças, os três filhos de Carlos e Lucas já eram nascidos.
Kawã, de 15 anos, Edgar, de 12 anos, e Ketlin, de 8 anos, não imaginavam que suas vidas mudariam completamente no dia 26 de junho de 2020 quando conheceram seus pais, o pedagogo Carlos Henrique Ruiz, de 36 anos, e o professor de Português, Lucas Rabello Monteiro, de 31 anos, na casa de acolhimento onde viviam, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro.
Carlos e Lucas, por sua vez, também não tinham ideia de que o desejo deles por constituir uma família impediria que três irmãos fossem separados e colocados em processos de adoção diferentes. E a história dos três irmãos se tornou também a de Carlos e Lucas. Os cinco formaram uma grande e amorosa família, cuja a rotina você pode acompanhar nas redes sociais @paisde3_.
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“Nós não salvamos eles. A adoção não é uma salvação. Nós formamos uma família e é isso que a gente tenta mostrar na nossa rotina”, destaca Carlos Henrique, o “pai Carlos”, ao comentar que algumas pessoas encaram a adoção de forma equivocada: “Já chegaram a dizer para nossos filhos que eles deveriam se ajoelhar e agradecerem por terem sido adotados. Eles não têm que agradecer nada, é nosso papel de pai prover o que eles precisam; educar e amar”, complementa Carlos.
Desde que a adoção por casais homoafetivos foi liberada pelo STF, o número de crianças e adolescentes que ganharam uma família vem crescendo ano a ano. Foram 135 adoções em 2019; 208 em 2020; 243 em 2021; 288 em 2022 e 115 crianças e/ou adolescentes adotados até maio deste ano. No total, foram 989 adoções por casais homoafetivos ao longo desses anos. Ou seja, são quase mil crianças e adolescentes que saíram da fila de adoção no Brasil.
A advogada Andréa Toledo Niess Kahn, especialista em direito de família, explica que os requisitos para um casal homoafetivo entrar com um processo de adoção são os mesmos exigidos para casais heterossexuais: “O primeiro passo é comparecer à Vara da Infância e da Juventude do Cartório mais próximo à sua residência objetivando a habilitação junto ao Cadastro de Pretendentes à Adoção. Será fornecida uma lista de documentos que deverão ser apresentados e o atestado médico de saúde física e mental. O casal deverá participar de grupos de Apoio à Adoção e preencher o pré-cadastro no site no CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Em seguida, serão feitas entrevistas por psicólogos e assistentes sociais que analisarão a aptidão dos pretendentes à adoção. O juiz, então, analisará o pedido de habilitação e, considerado habilitado, o casal entrará na fila da adoção e será avisado quando da existência de uma criança ou adolescente no perfil desejado”.
(Foto: Andréa Toledo Niess Kahn, especialista em direito de família)
O processo de adoção
Carlos e Lucas tinham um pouco mais de dez anos de relacionamento quanto decidiram que era hora de constituir uma família. Eles nunca esconderam o desejo de serem pais. “A gente sempre teve a vontade de ter filhos. Antes mesmo de sermos um casal. Só não sabíamos como seria isso, mas a vontade sempre existiu”, revela Carlos.
Eles contam que, em um primeiro momento, a única opção era um processo de fertilização no exterior e que isso não era viável economicamente para os dois. Mas a partir de 2015, com a decisão do STF em garantir aos casais homoafetivos o direito à adoção, um mundo de possibilidades se abriu e eles passaram a se preparar para a chegada dos filhos.
E foi uma longa preparação, que incluiu uma mudança de profissão para terem mais estabilidade financeira e mais tempo livre aos finais de semana. Dois pontos que eles consideravam importantes para a concepção de uma família: “Queríamos que nossos filhos tivessem contato com os avós nos finais de semana, tivessem lazer”, revela Lucas, ou “pai Lucas” como agora é conhecido. O casal trabalhava no segmento de eventos e a rotina aos finais de semana não era a que eles gostariam de ter quando estivessem com os filhos, por isso ambos foram estudar e buscaram uma nova profissão. Carlos entrou para a pedagogia e Lucas ingressou pouco tempo depois na faculdade de Letras.
Também teve muita pesquisa: “Desde 2015, a gente passou a acompanhar grupos nas redes sociais para saber como funcionava a adoção. Pesquisamos muito sobre tudo ligado ao tema, sobre a vara de infância, sobre os trâmites e documentos necessários, mas não sabíamos ainda quando, de fato, entraríamos no processo”, conta Lucas.
O encontro da família
No início de 2019, eles entraram com o processo de adoção na vara de Araruama, município do estado do Rio de Janeiro, onde moram. Ali, a única coisa que eles sabiam era que seus filhos poderiam ter de zero a oito anos, serem de qualquer etnia, qualquer sexo e possuírem doenças tratáveis, pois foram essas características que deram ao entrarem para a fila de adoção.
De acordo com dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), sob responsabilidade do Conselho Nacional de Justiça, casais homoafetivos são mais propensos a adotar crianças mais velhas, que estariam fora do perfil de procura padrão, que é de zero a quatro anos. Também é maior o percentual de adoção de irmãos por famílias homoafetivas. E isso ocorre porque, geralmente, esses casais entram no processo de adoção já dispostos a adotar mais de uma criança ou adolescente.
Carlos e Lucas contam que a primeira informação que tiveram dos filhos foi uma mensagem de WhatsApp, sem muitas informações preliminares, que comunicava apenas a existência de três irmãos que estavam aptos a serem adotados na região onde eles moravam.
O casal nem imaginava que a história dos três envolvia uma longa espera por uma família e uma dolorida e traumatizante desistência: “Eles já estavam inseridos em uma lista de busca ativa, que é quando as crianças e/ou adolescentes se enquadram em uma posição muito difícil de encontrar pretendentes. Não tinham mais pretendentes no Brasil. Eles seriam separados para uma adoção internacional”, recordam Carlos e Lucas.
(Foto: Kawã, Edgar e Ketlin)
“A gente acredita muito em Deus sabe. E agente acredita que eles chegaram em um momento da nossa vida que a gente precisava e a gente chegou na vida deles no momento em que eles precisavam”, acrescenta Lucas.
Ainda no abrigo, foi perguntado para as crianças se elas aceitavam “dois pais” e a resposta foi sim. Mas não pensem que todo o processo de adaptação foi fácil. Carlos e Lucas nunca duvidaram da paternidade, mas contam que o primeiro um ano e meio da família foi um grande desafio. As crianças chegaram sem formação escolar, sem conhecimentos básicos de higiene e com muitos traumas, especialmente depois de terem sido devolvidas.
Do primeiro dia da família, lá em 2020, para hoje, são três anos de aprendizado mútuo: “Nesse último ano eles têm demonstrado um desenvolvimento de maturidade muito veloz. A gente começa a perceber aquilo que a gente construiu lá atrás, já começa a ver uma autonomia e uma valorização do mundo que eles não tinham, pontua Lucas. “Hoje eles têm sonhos, hoje eles querem alguma coisa. Hoje eles acreditam no amor e antes eles não acreditavam. Ver os nossos filhos hoje, em relação a como eles chegaram, é uma realização”, acrescenta Lucas.
“O fato deles sorrirem, de estarem felizes, de falarem que tem uma família, de dizerem que ama a família, isso pra gente é uma vitória do que conquistamos juntos. Muitas pessoas colocam a gente em um lugar como heróis, como se fossemos algo diferente de sermos pais, mas estamos apenas sendo pais”, esclarece Carlos.
“Adoção é via de mão dupla”
Carlos e Lucas revelam que no processo de preparação para a adoção, eles se depararam com algumas pessoas que não estavam aptas para constituir uma família. E isso acendeu um alerta na cabeça de deles: “A gente percebeu a imaturidade das pessoas em relação ao que era o processo de adoção. Muita gente vê a adoção como uma forma de suprir as suas próprias necessidades em vez de entender que é um processo de mão dupla. Não são os pais que adotam as crianças, é uma adoção em conjunto”, destaca o casal.
(Foto: Carlos [atrás], e Lucas)
Eles recordam que durante esses anos já se depararam com pessoas maldosas e com pessoas que trazem o preconceito enraizado: “Muita gente pergunta: eles são irmãos mesmo. Mas não é somente a pergunta, é como ela é feita que incomoda. Mesmo que eles não fossem irmãos biológicos, eles seriam irmãos de qualquer forma, porque eles são nossos filhos. Outra pergunta que incomoda é quando falam dos pais biológicos e perguntam se os pais deles morreram. A gente sempre responde que não, que os pais deles estão vivíssimos, até porque os pais deles somos nós”, revela Carlos.
A doutora Andréa Toledo Niess Kahn, advogada em direito de família, explica também que ainda existe aqueles que não concordam com a adoção de crianças e adolescentes por casais homoafetivos na sociedade e, por essa razão, discriminam e praticam bullying. “Ainda que não concordem, é primordial que essas pessoas respeitem as diferentes formas de família existentes, impondo-se que se conscientizem de que todos são iguais perante a lei, não sendo permitida qualquer forma de discriminação, sujeitando-se à punição pelas condutas tipificadas como ilegais.”, enfatiza.
Pais de menina
Carlos e Lucas respondem muitas perguntas nas redes sociais, especialmente, questões sobre o processo de adoção em si e sobre o período de adaptação das crianças. E entre as questões que já perguntaram ao casal está a paternidade da Ketlin, que é uma menina.
“Sermos pais de menina foi um novo mundo que se apresentou pra gente. Porque a figura feminina que tivemos contato mais próximo na vida foram as nossas mães. Nós somos de família de maioria masculina. E quando a Ketlin chegou, até mesmo no primeiro dia do abrigo, foi mais difícil da gente ter aquele contato mais próximo dela. Porque era um mundo desconhecido, ela era menor e os meninos também começaram a querer chamar mais a atenção”, recorda Lucas.
Para cuidar da pequena Ketlin, que chegou com cinco anos, Carlos e Lucas contaram com a ajuda das mães e das cunhadas: “A primeira pergunta da Ketlin pra gente foi quem que arrumaria o cabelo dela e a gente ficou se olhando sem saber o que dizer”, conta Lucas.
Diante de mais esse desafio, o casal partiu para uma nova rodada de estudos. Estudaram sobre cabelo, sobre a questão do banho, da higiene íntima, tudo o que poderia ajudar no desenvolvimento da Ketlin e deu super certo. “Fomos aprendendo nesse processo de adaptação a sermos pais e ainda estamos nesse processo. E sermos pais de menina ainda é um desafio, porque são mundos diferentes daquele que a gente cresceu”, revela Carlos.
A família
Sempre que Carlos e Lucas falam de Kawã, Edgar e Ketlin é com brilho nos olhos. O amor e carinho fica evidente quando eles falam das particularidades de cada um. “O Kawã é o cara das plantas, ele adora plantas, ele adora a natureza. O Edgar adora dançar e isso é uma coisa que ele repreendeu durante um tempo porque ninguém ensinou que ele podia fazer o que quisesse. Já a Ketlin é uma artista. Ela gosta dessa atenção, ela é mais desenvolta, é a nossa estrela, né?”, descreve os papais orgulhosos de onde os filhos já chegaram e cientes de que eles podem chegar muito mais longe.
“Então a gente teve as primeiras vezes todas que muita gente acha que não vai ter”. “Ouvimos a primeira vez que eles nos disseram pais, a primeira vez na praia, a primeira vez comendo muitas coisas”. A gente teve muitas experiências e temos ainda muitas experiências incríveis como pais e eles como filhos”, revela Carlos.
“Acho que as pessoas não estão acostumadas com isso, infelizmente, de verem pais que dão atenção, que colocam as crianças com protagonista na relação da família. Mas é isso, somos uma família e ser pais é dar o que as crianças precisam: educação, respeito e amor”, finaliza Lucas.
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