Aleitamento materno: por que é tão polêmico amamentar no Brasil?
Foto: Madonna e criança, 1658 (101 x 78 cm), Pushkin Museum, Moscou -Francisco de Zurbarán (Wikicommons/Domínio Público)
Almoço de domingo, família reunida em volta da mesa do restaurante. Em frente a tanta comida e barulho, a criança chora e pede alento no seio materno. A mãe, pronta e preparada com o alimento de seu seio, desnuda o colo e oferece ao filho fonte inenarrável de nutrientes, anticorpos e toda substância que ele pode necessitar. Não demora e olhares reprovadores recaem sobre a mulher. Um garçom pede que ela vá até o banheiro pois há uma área separada para mães, e outros clientes em volta já se incomodam com a figura semelhante a uma Madonna aleitando sua cria. Comum, a cena se repete e causa constrangimento em mães que precisam amamentar seus filhos diariamente.
[leiamais]A recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS), bem como a do Ministério da Saúde, é de que o aleitamento materno exclusivo seja feito desde a sala de parto até o sexto mês de vida da criança e, a partir de então, mantido ao menos até os dois anos. Mas a realidade nacional é outra.
Uma pesquisa realizada pela Secretaria de Atenção à Saúde em 2009 descobriu que somente 41% das crianças com idade menor de seis meses tiveram aleitamento materno exclusivo (AME), e que a duração média da prática foi muito inferior ao recomendado: após 54 dias, a criança era ofertada com outras fontes nutricionais e, em média, o desmame ocorre por volta dos 341 dias, ou seja, 11 meses de vida.
Embora tenha números distantes do recomendado, o cenário brasileiro já foi pior. Em apenas nove anos, entre 1999 e 2008, a prevalência do aleitamento materno em infantes com idade entre nove e 12 meses saltou de 42,4% para 58,7%.
Fetichização e seio materno
A realidade que permeia as estatísticas pode ser tão complexa quanto a própria dificuldade em manter a amamentação. Não se trata apenas de obrigar mães a darem o leite do seio, a confusão em relação ao aleitamento materno parte, também, dos consultórios médicos e ambientes sociais. É o que explica a psicóloga Maria Fernanda Ayres Nogueira, pós-graduação em Psicologia, Perinatalidade e Parentalidade do Instituto Gerar.
"A amamentação, assim como outros aspectos da reprodução humana, nunca foi apenas do interesse do bebê e de sua família. Esse assunto sempre foi permeado por questões sociais, culturais e políticas. No geral, as mães são julgadas quando um bebê pequeno toma mamadeira e também relatam ser julgadas quando, sob qualquer circunstância, amamentam em público ou quando se trata de amamentar uma criança maior", afirma a Dra. Maria Fernanda, que completa: "Veja bem: espera-se o que dessa mulher? É difícil corresponder às expectativas sociais, até porque, às vezes, elas vêm de lados opostos. 'Não amamentou porque não se esforçou, o leite materno é o melhor para o bebê', 'Seu leite é fraco, você não produz o suficiente, melhor dar complemento', 'Não precisa mais dar peito para essa criança, ele já come de tudo, vai causar dependência emocional', entre outras falas".
Os interesses que permeiam a opinião social acerca da prática podem ir muito além da preocupação com a criança. Eles, muitas vezes, estão apoiados em paradigmas sociais relativos ao corpo feminino. "As mamas da mulher tem uma conotação sexual e são uma parte do corpo com grande potencial erógeno. Há quem as veja somente com esse olhar sexualizado e há quem negue completamente esse aspecto, focando apenas na parte nutricional. É muito difícil juntar na figura da 'mãe', um ser que cuida de seus filhos e também tem vida sexual ativa e prazer. É uma romantização que inclusive prejudica as mulheres na adaptação à maternidade. Essa divisão também explica porque é tão mais fácil ver mamas de fora no Carnaval, quando o que se mostra não são mães alimentando crianças, mas sim mulheres em contexto sexualizado", explica a especialista.
O julgamento a qual mães são expostas torna-se ainda mais incisivo quando a criança amamentada já não é bebê e entrou na fase nutricional na qual outros grupos alimentares são apresentados. A partir dos dois anos, quando o leite materno já passa a ser alimento complementar, caracteriza-se a amamentação prolongada, torna-se escolha da mãe e do filho, que já tem certo nível de consciência, quando ocorrerá o desmame.
"A questão de amamentar uma criança maiorzinha tem mais relação com o controle sobre o corpo da mulher e com a maneira que ela e o bebê escolhem vivenciar essa fase do que com a idade em si. Em nossa sociedade, por questões culturais, não é tão comum ver crianças maiores de dois anos sendo amamentadas, e isso pode causar estranhamento. Mas o problema é que as pessoas se sentem autorizadas a emitir opiniões a respeito, inclusive pedindo para mães não amamentarem em locais públicos 'para não constranger as outras pessoas'", completa a médica.
Foto: Pixabay
Fonte nutricional e imunológica
Apenas quatro entre 10 crianças são amamentadas exclusivamente com leite materno no Brasil até os seis meses. O número torna-se ainda mais escasso quando se analisa a situação do aleitamento materno em crianças a partir de dois anos.
Apesar dos dados, não é incomum ouvir de avós história de crianças que foram amamentadas até os sete anos. A mudança drástica no hábito pode ser explicada, em parte, pelo forte surgimento de campanhas e fórmulas, amplamente propagandeadas na década de 70, de leites consideráveis "maternizados", um substituto ao leite materno.
Os suplementos, embora nutricionais, não oferecem um dos mais importantes componentes do leite materno: os anticorpos. Segundo o Dr. Moises Chencinski, presidente do Departamento Científico de Aleitamento Materno da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP), o leite produzido no seio da mãe é superior a qualquer outro para suprir as necessidades alimentares e imunológica.
"O leite materno é a primeira vacina que recebemos quando nascemos e continua nos fornecendo anticorpos e nutrientes por toda amamentação. Quando você espera que até o sexto mês o alimento supra toda a necessidade da criança, entre o sexto mês e um ano, ele já precisa de alguns complementos. Sozinho ele não nutre tudo, mas continua sendo o alimento principal. Após um ano, a criança passa a ter a necessidade de outras fontes. Não dá para colocar na conta do aleitamento materno tudo aquilo que a criança precisa de nutrição, mas temos dentro do leite materno quantidades significativas de vitamina C e A, proteínas, carboidrato e, outra coisa que nenhum outro leite fornece, os anticorpos".
Além da ingestão do alimento, a amamentação é essencial para a manutenção da saúde do bebê em caso de doenças como resfriados, gripes ou viroses. Através do contato da saliva do filho com o mamilo são passadas para a mãe informações sobre o quadro da criança, que produzirá anticorpos adequados para combater aquele quadro em especial. Mas a relação mãe e filho desenvolvida a partir da amamentação não para por aí.
"O ato de amamentar favorece a proteção de cáries até os dois anos de idade e ajuda no desenvolvimento da arcada dentária e da respiração. Para essa criança, ela favorecerá também a aquisição de uma alimentação adequada, respiração adequada e desenvolvimento da fala. A gente está falando de benefícios nutricionais e imunológicos, mas vai muito além disso. Existe um vínculo que é tanto de ida do bebê para mãe, quanto da mãe para o bebê. Esse vínculo é fundamental para que essa criança tenha segurança e saiba que na próxima fase que se aproxima ela terá que ir sozinha, mas se precisar [a mãe] está aqui", esclarece o médico.
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Amamentação e a mãe
Além dos benefícios para a saúde da criança, o aleitamento traz melhorias para a saúde física e mental da mãe. Produzidos no início da amamentação, o hormônio prolactina, que faz a produção do leite, e ocitocina, que faz a ejeção do leite, ajudam o útero voltar ao tamanho normal de forma mais rápida após a gestação.
"Estudos que mostram que a amamentação favorece a volta do peso ao normal de antes da gravidez, previne contra o câncer de mama, ovário e colo de útero. Existe também a questão da maternagem, do cuidado com o bebê. A mãe fica favoravelmente mais cuidadora do filho", explica Chencinski.
"Eu amamento em livre demanda"
Escolher como continuar amamentando os filhos após os dois anos mínimos recomendados pela Organização Mundial da Saúde é um capítulo crucial para algumas mães. A questão de como conciliar na rotina o momento do mamar com a creche e outros compromissos diários causa questionamentos na relação familiar.
Mãe dos gêmeos Matheus e Mariana, de dois anos e quatro meses, Dayse Gripa, facilitadora do aleitamento materno do blog "O poder de AMAmentar", é adepta do que chama de livre demanda e sempre que os filhos solicitam os seios, ela os oferece. Segundo ela, o processo permite que não haja estresses na alimentação e facilita a continuação da amamentação.
"Amamento em livre demanda. Dia ou noite. Sempre foi assim. A maioria das mães que amamentam após os dois anos regula os horários, ou dá apenas para dormir. Aqui é liberado. Eles mudam o padrão de mamadas sempre. A cada fase, pico de crescimento, salto de desenvolvimento, dentes, vacinas, viroses (que tiveram apenas 3 vezes nesses dois anos e sempre leves). Aos 6 meses com a introdução alimentar eles continuaram mamando e a fase de experimentação dos alimentos passou dos 12 meses. Só com 13, 15 meses que passaram a comer quantidades maiores de comida. E o peito seguiu sendo o principal alimento nessa fase. Agora comem super bem, somos vegetarianos, buscamos uma alimentação saudável, e o peito é parte importante da nutrição deles hoje”, contou Dayse ao portal da RedeTV!.
Mas a escolha nem sempre é fácil para todas as mulheres. Érica Sousa, mãe da pequena Sophia, de um ano e sete meses, decidiu sair do trabalho para se dedicar melhor à filha. "Depois dos quatro meses eu ia voltar a trabalhar, mas conversando com a pediatra resolvi sair do serviço para cuidar da Sophia e para amamentar. É um vínculo muito bonito, foi assim desde o começo. A primeira vez que amamentei, achei que nem teria leite", relatou, revelando ainda ter enfrentando olhares tortos quando precisava dar de mamar. "Desde o começo, eu sou sempre fui muito tímida, então não gostava de amamentar em público. Ia amamentar no quarto para ninguém ver, mas mesmo assim alguém via e era muito ruim", completou.
Foto: Dayse Gripa, mãe do Matheus e Mariana: "Eles pedem agora já verbalizando: "Mãe, qué tetê!", e falam também: "Hum delícia!", "Te amo tetê", "Obrigada main!" "Main! No Tetê faz coração! Tum tum!". E outras pérolas lindas mais" (Arquivo Pessoal)
Prazo de validade para amamentação?
O fim da amamentação, para especialistas, deve ser decidido exclusivamente pela mãe e o filho. De acordo com o Dr. Moises Chencinski, o desmame não deve ser forçado. "Está existindo uma conscientização da importância do aleitamento materno por mais tempo. O desmame natural não depende de idade. O momento de parar de amamentar é quando a dupla, mãe e bebê, acha que chegou a hora. São eles que determinam o prazo final da amamentação", alerta.
Segundo o médico, a própria criança demonstrará as necessidades de mudança de fase: "Pode acontecer mais cedo ou mais tarde, mas a nossa perspectiva é que ocorra a partir dos dois anos para frente. Ela trocará o vínculo da amamentação por outro que, para ela, seja suficiente para que consiga crescer e desenvolver-se adequadamente".
E para as mães que estão considerando a amamentação prolongada, mas não se sentem totalmente a vontade ainda com a ideia, Dayse oferece um conselho valioso: "É super possível manter a amamentação prolongada, mesmo que com uma demanda reduzida, pela mãe trabalhar fora ou quando bebês vão para creche. O leite materno sempre será perfeito, ele é vivo e mutável, cada fase do bebê o leite é diferente. Se uma pessoa espirrar numa sala onde uma mãe está amamentando seu bebê, na próxima mamada seu leite já terá anticorpos para o vírus específico daquele espirro. Pretendo chegar a um desmame natural [com o Matheus e a Mariana]. Quando os próprios bebês decidem quando não mais querem mamar. Estamos caminhando bem nesse sentido. Sem pressa."
Foto: Érica Sousa, mãe da Sophia (Arquivo Pessoal)
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